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#2 | M., ou uma História sobre Girafas

Quando eu era pequena, meu animal preferido era a Girafa.

Não por que eu tivesse nenhuma afinidade com a girafa, veja: onde ela era alta e esbelta, o pescoço e as pernas longas, eu sempre fui uma coisinha atarracada e redondinha. Mas na pré-escola, uma professora deu para cada um de nós um animal cujo nome começasse com a mesma letra do nosso - e eu fiquei com a Girafa (e silenciosamente agradeci por não ter sido, sei lá, o Gorila).


Mesmo que na primeira série, aos 7 anos, eu pensasse que tinha deixado tudo da pré-escola pra trás, eu ainda carregava a Girafa como meu animal, como se fosse um bichinho de pelúcia preferido.


E na verdade eu tinha sim coisas em comum com a Girafa. Especificamente, o fato de que as pernas tão longas da girafa fazem com que ela tenha que ficar numa posição esquisitíssima pra beber água, abrindo quase um espacate pra alcançar as poças do chão. Eu não tinha que beber água do chão - ufa - mas também havia algo no meu jeitinho de ser que fazia com que eu tivesse que fazer tarefas triviais de maneira, bem, esquisitíssima.


(Já chego lá).


Tudo isso pra explicar por que eu decidi me declarar para o M.


Eu conhecia o M. desde antes de entrar no colégio, por causa do Gabriel - filho da melhor amiga de infância da minha mãe, e meu irmão postiço por usucapião. O Gabriel ficou amigo do M., e dos pais do M., e a gente acabava passando muito tempo juntos; desde brincadeiras com Lego enquanto nossos pais jogavam truco até idas pra tomar vacina (e comer McDonald's depois).


Mas quando a gente entrou na 1ª série A, o M. não era mais meu amigo - ele era a única âncora naquele mar de gente desconhecida, a única pessoa que sabia meu nome e sabia que eu gostava de desenhar e pintar. Ele e seus olhos verdes se tornaram sinônimo de conforto, e calma, e idas ao McDonald's depois de ter que aguentar uma vacina.


Só que eu não sabia disso. Eu só sabia que de repente, ver o M. significava ficar roxa de vergonha, esquecer as palavras que geralmente me vinham naturalmente. Mesmo aos 7 anos, eu já era uma comunicadora: eu gostava de falar, de ler em voz alta, de encenar peças de teatro (que eu escrevia) pra minha avó e minhas tias. Mas o M. conseguia fazer minhas palavras sumirem, engolidas pela enormidade do batimento do meu coração quando ele olhava pra mim.


Foi aí que a nossa professora organizou uma ida ao zoológico.

 

O zoológico de São Paulo é figurinha carimbada no calendário de eventos de qualquer primeira série. Fica a meia hora do colégio onde eu estudei, é grande e tem animais suficientes para entreter a trupe de 30 e poucas crianças de 7 anos, hiperativas e cheias de energia. Eu, é lógico, queria ver a girafa - meu bicho preferido - mas também queria ver o M.


Naquele dia eu era uma exploradora, e a Kodak descartável minha arma. A professora tinha dito que na semana seguinte, a gente teria que mostrar as fotos tiradas no zoológico como lição de casa, especialmente as fotos dos nossos bichos preferidos. Eu já tinha ido ao zoológico, mas com meus pais - e nunca com uma câmera pra chamar de minha. Pratiquei as fotos na fila de entrada, tomando cuidado com enquadramento e luz e...


Quem eu tô tentando enganar? Todas as minhas fotos eram mais ou menos assim:

Mas eu estava determinada. Ia tirar uma foto da girafa, mostrar pra professora, quem sabe virar uma fotógrafa famosa e ir pra Paris. A Fê e a Laura, minhas melhores amigas na primeira série, apareceram em todas as fotos da fila - enquanto eu ia praticando pra girafa. Além da Kodak descartável, eu tinha um filme de 24 - 24 chances de tirar a foto que me impulsionaria para as páginas da National Geographic.


(20, vai, considerando as fotos da Fê e da Laura, e as cheias de dedo).


Passeamos pelo zoológico num frenesi. Daquele dia, eu me lembro dos macacos fofos e meio assustadores, me lembro do sanduíche de atum que a gente comeu debaixo do gazebo. Me lembro do dia quente de verão, tão quente que grudava no corpo como se fosse açúcar, pegajoso e doce e intoxicante. Me lembro de comer sorvete, e espalhar o protetor nas bochechas com generosidade. Me lembro do meu boné da Minnie, rosa e laranja. Me lembro da casa dos répteis, anfíbios e invertebrados, com seu ar estranho gelado fazendo contraste com o calor do lado de fora.


Foi na casa dos répteis que a coisa começou a desandar.


Veja, eu nunca gostei de cobras. Nem de lagartos, nem de sapos, nem de aranhas. Pra ser bem sincera, eu não gostava de nada que tinha na casa dos répteis, anfíbios e invertebrados - salvo o ar condicionado. Eu só queria sair de lá o mais rápido possível.


É lógico que o medo é um chamado irresistível para um certo tipo de menino de 7 anos.


Eu não sei bem o que aconteceu. Sei que de repente os meninos resolveram fazer o que meninos dessa idade fazem de melhor: encher o saco. Eles começaram a cutucar as meninas, fingir que tinha uma aranha no cabelo de uma, puxar o tornozelo da outra, gritar, etc.


Eu já disse que nunca gostei de cobras, ou insetos, né?


Quando o Felipe cutucou meu ombro e gritou "OLHA A COBRA!", eu dei um berro digno de uma menininha de 7 anos. Virei pra bater no Felipe - visto que na primeira série impera a lei do mais forte, e qual lugar melhor que o zoológico pra estabelecer minha dominância - mas ele era maior e eu era, como dito, uma coisinha redondinha e atarracada. Já estava sentindo as lágrimas no canto dos olhos quando virei - e quem é que estava lá pra me defender?


O M.


Ele deu uma bronca no Felipe, disse pra ele não me incomodar e pra parar de mexer com as meninas. A melhor parte? O Felipe simplesmente saiu andando e me deixou em paz. Já o M. me deixou ali, com cara de boba apaixonada, solidificando no meu coração a certeza que eu sempre soube: eu gostava dos meninos bonzinhos.


Por isso mesmo, a girafa nunca teve chance. Quando a gente chegou na frente da jaula das girafas, seus pescoços altos arranhando o céu, minha câmera e minhas 24 (ou 20) fotos já tinham sido todos gastos com outra coisa... Aliás, com outra pessoa. Um menino de olhos verdes, que sabia meu nome e me defendeu dos brutamontes da primeira série A.


Se a National Geographic fosse National Giulianna Crush, o M. teria sido capa e editorial. Eu tinha fotos do M. em todos os ângulos, comendo sanduíche, tomando sorvete, tirando meleca do nariz, jogando um iô-iô e amarrando o tênis. Para algumas pessoas, no mínimo perturbador - pra mim, uma obra de arte.


Só tinha um problema. A lição de casa da semana seguinte.

 

Enquanto minha mãe mandava revelar as fotos pra eu entregar pra professora, eu soube que não ia ter chance de eu escapar daquela humilhação. A gente ia ter que mostrar as fotos do zoológico pra sala, e enquanto meus amiguinhos iam falar dos seus animais preferidos, eu ia ter um álbum com 23 fotos do M. Recebi o álbum, e batata: não tinha nenhuma foto de girafa. Nem uminha, nem ao menos uma no fundo de uma foto do M.


Então, a tarefa trivial que eu tinha que fazer - uma lição de casa - de repente se tornou uma oportunidade de imitar a minha amiga girafa e transformar ela numa situação esquisita. Eu não ia passar a vergonha de falar pra todo mundo da sala que eu só tinha tirado foto do M., né? Isso era esquisito. O que eles iam pensar? Isso ia acabar com a minha imagem. Eu não era esquisita. Definitivamente não era esquisita. Eu não queria ser esquisita, logo, não ia ser.


(risos)


Foi aí que eu vi que só tinha uma saída pra situação: como diria Olivia Pope, eu precisava controlar a narrativa. Eles não iam poder rir de mim se eu estivesse rindo primeiro, não é?


Eu já disse que era uma comunicadora nata. Por isso mesmo, a resposta óbvia era usar essa comunicação pra antecipar a vergonha que eu ia passar no dia de mostrar as fotos do zoológico. Dizer isso da maneira mais não-esquisita possível, pra todo mundo ter certeza que eu era extremamente não-esquisita, e eu continuar fazendo amigos e navegando o primeiro ano do colégio.


O plano estava pronto: "Como Não Ser Esquisita".


O dia chegou. A professora disse que a gente ia mostrar as fotos depois do recreio.


Eu esperei o recreio estar quase acabando, me coloquei na frente da porta do primeiro A.... E usando minha tática de marketing de guerrilha, coloquei o plano em prática. O plano da "não-esquisitice".


Para todas as pessoas que entravam na sala, eu falava: "Oi, sabia que eu gosto do M.?"


Pra Lívia: "Oi, sabia que eu gosto do M.?"

Pra Maria Fernanda: "Oi, sabia que eu gosto do M.?"

Pra Roberta e a Bela (que sempre andavam juntas): "Oi, sabia que eu gosto do M.?"

Pro Kiko: "Oi, sabia que eu gosto do M.?"

Pro Felipe (ugh): "Oi, sabia que eu gosto do M.?" - ele riu de mim e me cutucou na barriga.

Pro Pedro e pro João Carlos pra Renata e pra Isabela e pra Júlia P. e pra Júlia F.


Pra todas as 30 e poucas crianças da 1ª série A. Inclusive... Pro M.


Ele chegou com aqueles olhos verdes e aquela carinha de bonzinho que eu conhecia mais que todas as outras.


"Oi, sabia que eu gosto de você?"


E foi aí que ele me respondeu o que eu jamais imaginava que ele fosse responder, a coisa que eu mais queria evitar:

"Sabia. Você ficou tirando foto minha no zoológico... Você é esquisita".

 

Minha reputação como esquisita apaixonada pelo M. durou mais ou menos duas semanas, visto que crianças tem energia longa e memória curta. O M. nunca deu bola pra mim - na verdade, ele estava mais preocupado em jogar iô-iô e futebol, bater figurinha e brincar de pokémon. Mas depois do dia que eu anuncei pra sala que gostava dele, ele não falou mais comigo: fingia que não lembrava meu nome, seus olhos verdes sempre rápidos demais e distantes dos meus.


Isso partiu meu coração, e me ensinou uma coisa.


As coisas que a gente mais tem medo vão acontecer. As pessoas vão descobrir nossas fraquezas, nossos segredos. As coisas que a gente acha que esconde não vão continuar escondidas. As pessoas que a gente ama vão preferir jogar iô-iô e ignorar a gente, por que mesmo que a gente ame algumas pessoas, vamos ser muito esquisitas pra elas - como as girafas. E às vezes a gente *vai* ser esquisitas, mesmo. Mas as girafas, mesmo esquisitas, continuam sendo lindas, altas, esbeltas, e eu também vou continuar sendo. Mesmo que eu seja esquisita. Que nem uma girafa.


Como eu tinha 7 anos, essa lição provavelmente veio na forma de: "eu adoro girafas...


...E eu odeio o Felipe."

 

Gostou? Eu também falo merda pelo Twitter no @giuldom.

Semana que vem, tem mais Coração Partido.

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