O A. queria ser astronauta.
E não era uma vontade tola de criança, mesmo que ele só tivesse 8 anos quando anunciou pra sala toda que queria ser astronauta. As pessoas riram, como se a noção de subir num foguete e voar rumo à lua fosse um disparate completo e irreal. E ainda assim, o A. não arredou o pé.
Ele era muito bom em matemática - porquê astronautas precisavam ser bons em matemática.
Ele lia livros sobre o pouso na lua - porquê era um jeito bom de se preparar pra ser astronauta.
Ele tinha um álbum de astronautas, onde ele colava as figurinhas com a precisão e foco de... Bom, de um aspirante a astronauta.
Acho que foi por isso que eu me apaixonei.
Eu era (na verdade sempre fui) linhas tortas, desarranjos e sonhos desconexos. Se o A. era uma figurinha de astronauta colada exatamente na linha, eu era um mural de colagens de revistas, quadrinhos e desenhos. Não que isso fosse um problema, mas eu nunca tive aquela convicção certeira do que eu queria ser quando crescesse. Entre os 5 a 8 anos, eu já tinha tido milhares de profissões imaginárias: pirata, rainha dos ladrões, professora, bruxa, astrônoma e equilibrista.
Quando o A. disse pra sala inteira que ele queria ser astronauta, tão simplesmente como quem sabe o que quer comer no almoço, eu vi uma coisa que muito me faltava: a certeza. Todo mundo riu, e ainda assim ele nem se mexeu, nem ao menos parou de sorrir um sorrisinho curto e sério (bem de astronauta). Mesmo o A. sendo um menino mirrado, loirinho de olhos aguados e azuis, eu olhei pra ele e não vi o menino.
Eu vi um astronauta.
Mais do que o A., eu me apaixonei por essa certeza. A solidez de um sonho que não era mais sonho, não realmente: sonhos são feitos de amor e esperança, materiais doces; mas fluídos e inconstantes. O que o A. tinha era feito de rocha lunar, com contornos e massa e peso. Ele tinha uma ambição. Ambições são construídas com tijolos, e esforço, e tempo e grafite e horas passadas numa mesa olhando para equações.
Ambições são duras - e duráveis.
Elas são feitas pra durar.
Eu me joguei nessa paixão com o entusiasmo de sempre. Se a ambição do A. era ser astronauta, a minha era estar do lado dele - e eu me lancei de cabeça nessa ambição, modelando o comportamento obsessivo do menino em minha perseguição.
Eu passava o recreio perto do centro de informática, por quê sabia que era onde ele ia estar. Escrevia longas cartas para "Meu amado astronauta", imaginando o futuro onde eu seria a sua prometida, esperando por ele enquanto ele ia numa missão à lua. Em outras cartas, eu o acompanhava na missão, mas morria tragicamente após uma colisão com um asteróide.
(Sempre fui muito dada ao drama).
Até trocar de lugar na sala eu troquei, pra poder sentar atrás do A., e quantas aulas de matemática eu não passei imaginando todo o tipo de cenário astronáutico-romântico - a nuca do A. era a minha tela, e eu apenas uma poeta apaixonada.
Acho que foi aí que eu fiz um erro de cálculo.
Veja, eu sempre fui uma poeta. Eu levava uma cópia surrada d'O Hobbit pra escola e chorava lendo Senhor dos Anéis. Mesmo quando eu nem sabia, mesmo quando não articulava as palavras tão frequentemente como faço hoje: eu sempre olhei para o mundo tecendo histórias e suspiros. Eu vivo seguindo o compasso do meu coração - o que faz com que eu seja dramática e meio louca e dada ao choro sem sentido e aos arroubos de sentimentos. Faz com que eu consiga colocar todo o meu coração numa página em branco, por que eu vejo páginas em branco como esponjas de sentimento. O mar nunca é só o mar: é a aventura chamando, com gosto de sal e pólvora. O céu é o gosto da liberdade nas asas de um pássaro. As estrelas e a lua são a tela pela qual a gente olha pro passado, a tela na qual nossa pequenez se faz evidente.
O A. tinha a ambição de ser um astronauta. E se ambições são duráveis, feitas pra durar, elas também são duras - com bordas de aço e fios de navalha.
Eu lembro exatamente quando eu consegui criar coragem pra falar com o A. Era aula de matemática, minha aula menos preferida, e eu já não prestava atenção mesmo - então era a oportunidade perfeita pra fazer ele me notar. Eu tinha o plano perfeito, além de tudo.
Estiquei a mão, bati no ombro do A. (aproveitando as vantagens de ter trocado de lugar pra sentar atrás dele) e quase perdi a fala quando ele virou pra mim, aqueles olhos azuis refletindo as estrelas (imaginárias, visto que era tipo 2 e meia da tarde)
"Oi."
Ele não respondeu. No fundo, a professora explicava como fazer uma multiplicação usando a operação básica. Eu respirei fundo.
"Me empresta o apontador?"
O A. franziu a testa. Eu tinha propositalmente esquecido o meu apontador em casa, me preparando para aquele momento. Eu sabia que ele tinha um apontador - não só um apontador, mas o apontador, uma coisa que parecia um foguete e tinha uma manivela pra deixar o lápis bem apontadinho. Coisa de astronauta. Minha ideia era elogiar o apontador dele, falar que eu gostava de constelações, etc. Quando ele respondeu, foi cauteloso.
"Você não tem apontador?"
Ok, ele parecia um pouco mais desconfiado do que eu imaginava.
"Não... Você me empresta?"
Silêncio. O A. claramente estava incomodado comigo, talvez por ter interrompido a aula de matemática, talvez por não ter nem as peças básicas de material escolar. Dizem que no espaço você não consegue ouvir sons, por causa da falta de atmosfera para carregar as ondas sonoras - eu juro que naquele momento a sala do 2°B continha sua própria galáxia.
"Lógico que não."
O A. voltou a olhar pra lousa, apontando seu próprio lápis no apontador preto com a manivela, copiando o que a professora escrevia no seu caderno - sem se dar conta de que meu coração tinha acabado de explodir em mil pedacinhos, como se tivesse batido num asteróide.
Você deve estar pensando que meu amor nem era tão intenso assim se eu fui destruída por um simples desapontamento (risos). A verdade é que eu nunca tinha parado pra pensar sobre o custo da ambição do A. - sobre como a ambição, sozinha, não era exatamente o que me atraía.
Por mais que eu tivesse desdenhado do sonho, eu era feita de sonhos. E um menino sem doçura, sem a fluidez de um sonho, sem a cortesia e a suavidade que são as matérias primas da poesia... Não era pra mim. Ele era astronauta: eu, era poeta. O nosso amor não ia durar, mesmo.
Na segunda série tudo era muito fácil, então logo depois do fiasco do apontador eu decidi que não gostava mais do A. Voltei a sentar do lado das minhas amigas, passar o recreio na biblioteca, carregar meus livros de fantasia e ficção pra todos os lados. Nem olhar mais pro A., eu olhava: carreguei o desapontamento nos lápis e no coração.
Mas seria injusto dizer que uma coisa não ficou. O A. me ensinou algumas coisas sobre mim mesma, algumas coisas que eu nem sabia.
Primeiro: a ambição me atraía, não em qualquer pessoa - mas dentro de mim, como uma corrente elétrica.
Segundo: eu era uma romântica incurável, apaixonada pelas estrelas e pela imensidão do universo. Talvez não de uma maneira científica, mas não menos verdadeira.
Terceiro: homem nenhum vale a humilhação de não ter um estojo completo. Daquele dia em diante, eu trouxe meu próprio apontador.
Até hoje, quando eu lembro do A., eu espero que ele tenha conseguido alcançar o seu sonho - e o meu?
Eu continuo olhando pro céu com os olhos de uma poeta - e ao invés de tentar decifrar o inefável, carrego as estrelas na pele, pra nunca esquecer de me amar do jeitinho que eu sou: dramática, estranha, e cheia de poeira de estrelas.
Gostou? Eu também falo merda pelo Twitter no @giuldom.
Semana que vem, tem mais Coração Partido.
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