O R. era o menino mais bonito da pré-escola.
Todo mundo sabia disso. A Paula sabia disso, a Ana Luiza sabia disso, eu, do alto dos meus cinco anos, sabia disso. Não tinha como não saber: ele era cheio de cachinhos escuros na caixola, os olhos castanho e doces, o nariz coberto de sardinhas. Se eu fechar os olhos eu consigo até ver as sardinhas. O sorriso era cheio de dentes de leite e risadas.
Mas não foi bem por isso que eu me apaixonei por ele. Eu era - sou - uma mulher de princípios. Ambições.
Eu me apaixonei por ele por quê os pais dele foram pro Egito.
Explico: o R. morava muito perto da minha casa, e nossas mães - num acaso do destino - ficaram amigas. A mãe dele, tia Silvana, era dessas mulheres que sempre pareciam estar a caminho de um aeroporto, ou voltando de um. Ela tinha o cabelo curto e preto, usava lenços de cashmere e tinha umas estátuas na casa dela.
(Estou usando o passado, mas espero que ela ainda esteja viva).
E aí um dia a Silvana chamou a gente pra jantar na casa deles, um sobrado bonito lá em Pinheiros. Eu não me lembro bem dos detalhes - lembro que a casa era bem escura, mas de um jeito chique, tipo o laboratório da Yzma na Nova Onda do Imperador.
Eu nem gostava do R. nessa época, então a gente conseguiu brincar e tudo. Não me lembro direito de nada daquela noite, exceto uma coisa: em cima do aparador da sala, a tia Silvana tinha uma foto da família que me chamou a atenção assim que eu entrei na casa. Nela, o R., o irmão dele, a tia Silvana e o marido dela estavam abraçados em frente às pirâmides do Egito, óculos escuros e um chapéu adornando a cabeça da tia Silvana como se ela fosse uma rainha faraônica.
Eu nunca tinha ido ao Egito, é lógico. Filha de dois pais de classe média que ralavam muito, o Egito era um sonho distante. O contato que eu tinha com o Egito era através de fontes de informação confiáveis, tipo o filme da Dreamworks "O Príncipe do Egito" e livros de mitologia. Mas eu acho que já mencionei aqui que eu sempre fui romântica, né? Bom, além de romântica, eu era aventureira. Eu sonhava com um mundo bem maior do que o meu, um mundo em que eu usava chapéus e lenços e pulava de um avião pro outro e conhecia as pirâmides no Egito.
E daí, daí eu tive que me apaixonar pelo R. Ele era o caminho mais rápido pra tudo isso.
Só que, como eu falei no começo, o R. era o menino mais bonito da pré-escola. Eu tinha que entrar nessa sabendo que a competição era ferrenha - mesmo que eu já tivesse ido jantar na casa dele, a Ana Luiza, a Hisa e a Paulinha comiam no recreio com ele. A Paulinha era minha melhor amiga, mas ela tinha o hábito de morder as amiguinhas dela. Ela tinha os cabelos loiros cacheadinhos, também, que nem o R. A Hisa era uma das melhores amigas dele. E a Ana Luiza... Bom, a Ana Luiza era a menina mais bonita da escola. Tanto quanto o R. era o mais bonito.
Essa era eu:
Eu sempre fui bochechuda, e quando ficava irritada - o que acontecia com frequência, visto que meu gênio forte só era exacerbado quando eu tinha 5 anos - meu rosto ganhava uma cor intensamente vermelha, que me rendeu o feliz apelido de Tomatinho.
É, não tava muito jogo pra mim. Por sorte, eu tinha um plano.
Como qualquer pré-escola que se preze, a minha tinha uma peça. A do meu ano ia ser uma apresentação da música "O Rato", do grupo Palavra Cantada, em que um ratinho se apaixona - e se declara por vários elementos da natureza / objetos - incluindo a Lua, a Brisa, a Nuvem e a Parede - até finalmente encontrar com seu verdadeiro amor: a Ratinha.
Lógico que o R. ia ser o Rato. Já estabelecemos que ele era o menino mais bonito da pré-escola. Logo, eu queria ser a Ratinha, pra gente ter uma cena romântica com ele se declarando pra mim e etc. Tudo perfeito, certo? E assim, modéstia a parte eu era *a* candidata perfeita pra ser a Ratinha. Eu tinha o carisma, a presença de palco, a gravidade shakesperiana necessária pra um papel desse calibre.
Não preciso nem dizer que quem pegou o papel de Ratinha foi a Ana Luiza.
Tudo bem, eu pensei. Ainda dá pra eu dividir uma cena com o Rato, afinal, ele se apaixonava por várias coisas antes de se declarar pra Ratinha. Eu ia ser uma heroína trágica, a vida não imitaria a arte, etc. Eu ainda podia ser a Brisa, ou a Nuvem, ou a Lua (ou a Parede, mas quem é que quer ser uma parede? Com o meu talento?). A fantasia de Lua era bem bonita, com uns papéis celofane azuis e transparentes.
Vou te dar uma chance pra adivinhar o papel que a prof me deu.
Ser a parede numa peça foi apenas a primeira das minhas humilhações relacionadas ao teatro.
Fizemos "O Rato", a Ana Luiza e o R. contracenaram (embora com muito menos emoção do que eu seria capaz), e eu fui a Parede Parada.
Bom, o caminho da dramatização não tinha dado certo, né? Então eu decidi partir pra artilharia pesada: eu decidi pedir o R. em casamento.
"Pedir" talvez seja o verbo errado.
Na minha pré-escola, um dos brinquedos mais cobiçados era uma cozinha de plástico da Fisher Price, tipo essa aqui:
Eu decidi que o R. seria meu noivo, e a cozinha da Fisher Price nosso altar.
Por sorte, eu era maior que o R. E mais invocada. E mais determinada. E foi por isso que, um belo dia, eu anunciei pra ele que a gente ia casar - e que o C., o menino loiro alérgico à leite da pré-escola, ia celebrar nosso casamento.
Eu marchei até o R. naquele recreio, puxei ele pelo braço e com a ajuda de uns dez coleguinhas - que nada entendiam de romance, mas sabiam muito bem o que era uma bagunça organizada - levamos o menino até a cozinha da Fisher Price. Ele estava obviamente um pouco confuso, visto que o compromisso pra vida eterna não estava necessariamente nos seus planos (ele tinha acabado de se declarar pra Ratinha, afinal de contas). Mas eu não estava pra brincadeira.
Eu arranjei uma corda de pular, e AMARREI O R. NA COZINHA DE PLÁSTICO DA FISHER PRICE. E fiz ele casar comigo.
(Bem se vê que eu não entendia muito bem o conceito de rejeição, consentimento, racionalidade).
E aí, a gente viveu felizes para sempre.
Quer dizer, não bem pra sempre. Quando o R. conseguiu se desvencilhar da cozinha de plástico, depois de ser obrigado a dizer "sim", ele saiu correndo / gritando pelo pátio de recreio dizendo que eu era doida. Ele nunca mais falou comigo, e eu nunca mais visitei a casa da mãe dele, com as fotos no Egito e a decoração de mármore escuro. Eu continuei sendo o Tomatinho, e o R. me chamava de doida regularmente.
Ele meio que tinha razão.
Eu me lembro muito pouco do R. depois disso. Ele continuou sendo o menino mais bonito da pré-escola, eu continuei sendo um Tomatinho invocado - e divorciado, agora. Mais madura?
Bom, eu tinha só 5 anos.
O que o R. me ensinou é que não importa o quanto você ame uma coisa. Pode ser o Egito. Pode ser teatro. Pode ser um menino com a cabeça cheia de cachinhos, olhos gentis, um nariz cheio de sardinhas. Você pode saber, dentro do seu coração, que vocês são feitos um para o outro tanto quanto tomate pra queijo. Você pode ter certeza que correr atrás dos seus sonhos é a melhor opção.
Ainda assim, existe um limite - e esse limite é amarrar os seus sonhos numa cozinha de plástico e obrigar eles a amarem você de volta.
O problema do coração é que ele não sabe ouvir não.
Meu coraçãozinho - pequeno, invocado, vermelho como um tomatinho - levou sua primeira queda e rachadura. E sabe do que mais? Eu descobri uma coisa:
O primeiro "não", a gente nunca esquece.
De uma coisa eu sei: nem o R. nem o teatro nunca me amaram de volta, mas teve um sonho que amou:
Gostou? Eu também falo merda pelo Twitter no @giuldom.
Semana que vem, tem mais Coração Partido.
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